De Volta Para Casa

 
Eu não sei como foi, para elas, chegar ao santuário – aquele momento em que as portas da caminhonete se abriram e a luz do dia alcançou seus olhos pela primeira vez na vida – mas sei que, por um momento de tirar o fôlego, quando olhamos pela primeira vez para as cem almas alojadas ali dentro em segurança, não vimos a massa disforme de penas sujas, as feridas abertas, os ossos partidos, os bicos decepados, as vidas escarnecidas. Vimos apenas – em um sopro de infinito alívio e prazer – cem almas que continuarão a respirar. E, por um instante, o brilho de sua presença viva ofuscou tudo o mais – a catástrofe que fizemos de suas vidas para nosso deleite, o desespero que envolve os cinqüenta bilhões que ficaram para trás, a sombra de uma humanidade que impõe misérias indescritíveis por puro capricho.
 
Por um exuberante momento, deixamo-nos luxuriar pela doçura daqueles cem finais felizes. Então, aceitamos uma vez mais o trabalho de criar, manter, tratar, apoiar, suportar e nutrir cem novos começos.
 
Esta centena de aves, que agora fitavam o céu aberto pela primeira vez na vida, eram lixo industrial, galinhas “gastas” resgatadas de uma fazenda produtora de ovos de “animais criados soltos”, onde passaram uma vida inteira de privação física, social e psicológica, fêmeas cujos corpos esgotados não eram mais capazes de despejar ovos com a antinatural taxa de produção que foram forçadas a manter por toda sua vida ainda jovem, e estavam sendo mandadas para o abate para serem substituídas por uma nova geração de vítimas cujos corpos seriam usados por uma fração de suas vidas e então assassinadas em massa, apagadas da existência, excluídas da consciência, nenhum traço de sua existência terrestre deixado para trás, nenhuma pena, nenhum canto, nenhum filho, nenhum sonho.
 
Nada em suas vidas cativas as havia preparado para a liberdade. Nascidas em incubadoras e criadas por máquinas isoladas de mães, famílias ou comunidades que pudessem tê-las ensinado as habilidades e faculdades que a vida exige, elas não tinham habilidades sociais que garantissem sua aceitação numa comunidade de aves livres, nem uma linguagem que pudesse ser compreendida pelas galinhas fora de seu gulag e, depois de uma vida inteira de abuso sistemático, a maioria havia perdido até mesmo a habilidade de cuidar de si mesmas. Porém ali estavam elas. Convidadas a viver e serem livres.

Nos primeiros minutos, elas estavam estranhamente silenciosas. Nenhum cacarejo, nenhum movimento. Apenas nos observavam com o respirar de criaturas debilitadas. Algumas estenderam seus pescoços nus e espiaram o mundo ensolarado em silêncio, olhos cheios de areia, piscando, olhando o imenso exterior com olhos não acostumados à luz do dia, espaços abertos, ou qualquer outra visão que não a crueza do galpão sem janelas em que estiveram confinadas desde a infância. Outras se derrocaram em um infinito cansaço, escondendo-se em si mesmas – ombros encolhidos, asas arrastando, cabeças pendendo, exaustas demais até mesmo para erguer o olhar. Algumas estavam mortas, os corpos frios por cima de seus ovos ainda mornos, as penas tremulando na brisa viva, os olhos fechados tão completamente que pareciam nunca ter existido, nunca ter iluminado aquela face, fechados tão implacavelmente como se determinados a manter os horrores do mundo finalmente, seguramente, irreversivelmente do lado de fora.
 
Todas se mantiveram paradas e quietas até que Chris subiu na caminhonete e começou a colocar gentilmente uma a uma nas mãos de Michele. Então, em um instante, o grupo todo entrou em um pânico cego. Elas correram para o fundo da caminhonete gritando, amontoando-se, subindo em cima das outras, tentando freneticamente se esconder ou escapar, espremendo-se juntas em busca de conforto, um milímetro extra de proteção, um milisegundo extra de existência, ainda apegadas ao escárnio que fizemos de suas vidas, ainda tentando salvá-las, ainda com esperança (de quê?).

Por mais gentilmente que as pegássemos, segurássemos e amansássemos antes de colocá-las no chão coberto de palha, elas ainda gritavam temendo por suas vidas tristes. Este foi o único som que ouvimos delas naquele dia e em muitos dias vindouros – o som do medo, do sofrimento, do desespero – o registro trágico de uma vida de tormento. E a cada renascer, a cada nova ave erguida da adversidade de seu passado em direção a um futuro livre, sentíamos igualmente o gozo da vida enfim liberta, finalmente livre para vir a ser, e o peso, o apelo, o puxão, a facada no coração das vidas deixadas para trás, ainda tremendo amedrontadas, ainda debilmente movidas por uma absurda e incontida esperança.

Na primeira vez em que pisaram o chão coberto de palha, a maioria ficou ali, imóveis por um minuto ou dois, olhando ao redor, confusas, exaustas, balançando de um pé para outro como se ensaiassem um passeio que estivessem prestes a dar pela primeira vez na vida – os primeiros passos atordoados em direção a esta vida que estava enfim livre para começar – andando no mesmo lugar por um instante, então titubeando em direção a um dos cantos do celeiro e se unindo a um dos dois grupos que rapidamente se formavam ali. E ali permaneceram. Por um longo tempo, nenhuma delas arriscou ir ao centro do grande celeiro. Ficaram escondidas agrupadas em seus cantos, paradas e silenciosas exceto por alguns gestos e ruídos amedrontados.
Era doloroso observar. Elas pareciam desconhecer as coisas mais simples, as mais naturais: como estar em seus próprios corpos, como habitar suas próprias vidas. Eram movidas por um peculiar estado de alerta, um alerta que eu nunca havia visto antes. Tinham uma aguda consciência de tudo a seu redor, reagindo ao menor movimento, ao mínimo estalo, ao som mais suave – a queda de uma folha fazendo o bando todo se encolher como se atingidas por um golpe físico em seu corpo. Mas, ao mesmo tempo, pareciam estranhamente desconectadas de tudo, inclusive, ou principalmente, de sua própria existência desgastada, vivendo suas vidas melancólicas, caóticas e menosprezadas, numa forma lúgubre de distanciamento infeliz, uma espécie de resignação amargurada, a maioria sem fazer menção de limpar as penas incrustadas de sujeira, curar suas feridas, proteger os ossos frágeis, ou alimentar seus corpos famintos e sedentos. Cada uma arrastando para dentro desta nova vida o horizonte devastado de seu passado – os bicos amputados, as costas arqueadas, os ombros engrunhidos, os ossos quebradiços, as regiões sem penas cobertas de feridas e abrasões, o olhar derrotado, o caminhar incerto.
Podia-se ver, na face mutilada de cada ave, o registro de sua luta para escapar da faca quente que cortara fora seu bico sob uma nuvem de fumaça acre: o bico havia sido cortado até a raiz, ou ferido em um ângulo, ou a mandíbula partira e protuberava sob os estilhaços da parte superior, ou havia um calombo na ponta do bico, uma estranha e malsucedida tentativa de cura, ou um tumor se desenvolvera em resposta ao trauma e obstruía as narinas. Podia-se ver em que direção cada ave desesperadamente sacudira a cabeça para escapar à lâmina (para cima, para baixo ou para os lados), podia-se ver com que violência se debatera e o quanto o grito abrira seu bico à medida que a faca cortava o osso, a cartilagem e os tecidos – o bico está ferido reto ou em um ângulo, a ponta está redonda ou chata, ou a parte inferior se parte e se divide, ou a parte superior está completamente perdida, ou as pontas estão soldadas em uma abertura redonda, congeladas em uma permanente expressão de espanto, uma grotesca ilusão de lábios frisados em um beijo.

Mas também se podia ver, com imensa gratidão e tristeza, a luz interior da vida de cada ave, sua beleza dourada, seu intenso ímpeto de viver e vir a ser ainda brilhando dentro da escuridão.
 
Naquele dia, e ainda por algumas semanas, muitas ficaram aglomeradas, buscando uma ínfima medida de calor e alento sob rotas asas alheias. Recusavam-se a deixar o celeiro, mantendo-se entrouxadas em um canto escondido e observando o extenso, enorme e ativo mundo lá fora de dentro do abrigo. Outras focavam exclusivamente o pedaço de mundo imediatamente à sua frente e bicavam o ar neuroticamente, por horas a fio, em alvos invisíveis.
Algumas tentavam se fazer invisíveis, enfiando-se no primeiro buraco, mesmo se o espaço fosse pouco maior que o suficiente para esconder seu rosto. Podia-se vê-las tentando desaparecer dentro desses bunkers absurdos, os corpos e as caudas ralas ficando para fora, mas suas faces escondidas, os olhos cobertos, protegidos das insuportáveis, devastadoras e assustadoras imagens e sons da vida. Ficavam imóveis em seus míseros e patéticos esconderijos, coração acelerado, corpo trêmulo, desejando nada além de um fim para o terror, uma migalha de conforto e paz.

Algumas almas impetuosas se aventuraram no centro do celeiro, aparentemente com a certeza de que ali jazia aquilo pelo que ansiaram durante toda sua jovem vida – o que quer que isso fosse para alguém condenado a um ambiente desolado. Alimento para a alma? Conhecimento? Um sensação de possibilidade? Sua curiosidade, sua necessidade de alimentar a mente faminta, eram maiores que a precaução.

Uma jovem e intrépida galinha saltou em uma tigela de grãos não porque quisesse comer – a nutrição podia esperar – mas porque queria fazer algo que lhe fora negado por toda a vida: um banho de areia. Podia-se ouvi-la adejar e saltitar dentro da tigela, cavoucando os grãos, cobrindo-se deles, arremessando-os no ar como confete e, à medida que as contas esfregavam e limpavam sua pele incrustada, o que lhe restava de penas esvoaçava como uma rosa maltrapilha, suas frágeis asas e pernas faceiras em um arroubo extático, os olhos revirando num sonho, as pálpebras cerradas sob o doce peso do deleite. O primeiro banho de areia de sua vida.

Perto dela, em uma tigela d’água próxima, três galinhas se ajuntaram e beberam, desapressadas, como se tivessem todo o tempo do mundo – elas tinham! – mergulhando os bicos mutilados em água fresca, deixando o fresco burburejar de cada gole rolar língua abaixo, uma gota faiscante sempre pendurada na ponta, olhos fechados, cabeças inclinadas para trás, o queixo erguido para o alto, o bico entreaberto como num silencioso canto para o céu aberto.

E então havia a jovem galinha que não se movera do lugar em que havia sido colocada. Que ainda se apoiava contra a escada de poleiros, uma asa pendurada no degrau mais baixo, outra arrastando no chão como se tentasse mantê-la em pé, mantendo ou retomando o equilíbrio.
 
Quando gentilmente empurrada, cambaleava até a tigela d’água mais próxima e se acomodava ali, sem ir adiante. Ficava ali, o ângulo da crista caída apontando para um olho assustado, aturdido. Muitas paralisaram assim quando pisaram pela primeira vez em terreno aberto, incertas do que fazer, aonde ir, incertas do que fazer com o fato de que HAVIA para onde ir, um horizonte que se estendia além do muro da prisão que haviam mirado por toda sua pobre vida, um espaço repleto de algo que nunca haviam experimentado: céu aberto, luz do sol, canção de pássaros, perfumes de uma terra viva – e um chão que acariciava o pé, estalando, murmurando e cedendo docemente sob cada passo, um chão que não punia cada passo como os pisos de arame sobre os quais andaram a vida toda – um piso coberto de palha!
 
Mas esta pequena galinha nunca se movia. Permanecia imóvel no mesmo ponto por horas, incapaz ou indesejosa de comer ou beber ainda que houvesse comida e água a poucos centímetros.
Enquanto as outras estavam ocupadas experimentando seus primeiríssimos momentos de espantosa liberdade como podiam, cambaleando perplexas, ou procurando atabalhoadamente por uma vaga coisa qualquer, ou se escondendo, ou se aglomerando, ela ficava ali sozinha com suas penas sujas e desarrumadas, a barriga baixa incrustada com a sujeira em que foi forçada a viver toda a sua vida, o pescoço desnudo em carne viva, o toco superior do bico apenas longo o suficiente para cobrir a língua, a parte inferior partida e estendida pateticamente no ar como uma mão pedinte. Sequer olhava em volta, como se o esforço de ver, de absorver qualquer coisa extra, fosse demais. Como se não tivesse razão para prever algo além de mais angústia, mais sofrimento, mais abuso, mais da obscuridade que experimentara sendo criada numa linha de produção de ovos.
Horas mais tarde, ela ainda estava no mesmo ponto, inerte, atordoada, desconectada, quase-morta. Mas agora ela havia botado um ovo e estava parada sobre ele como se fosse algo completamente estranho, algo que nunca tinha sido parte de seu corpo. Ali estava, malmente capaz de se sustentar a própria vida mas ainda despejando os ovos que a esgotavam. Ali estava, cercada por um mundo que finalmente, incrivelmente, improvavelmente, desejava-lhe vida, mas ainda incapaz de retornar à vida repleta, ainda se exaurindo ao botar mais ovos, ainda parada, perplexa e só no meio do celeiro.
 
Não sei o que ela sentiu parada ali, derrotada em seu primeiro dia de vida e liberdade, mas sei que o que sentimos ainda mais intensamente que a tristeza por sua vida ferida, foi uma vergonha lancinante. Vergonha pela devastação que nós – os animais morais, os únicos com uma escolha, os detentores absolutos do poder no reino animal – impomos diariamente, intencionalmente, desnecessariamente aos fracos, aos oprimidos, aos desafortunados inocentes do mundo. Vergonha pelo fato de o fazermos por algo tão frívolo quanto um sabor, sabor que pode ser tão facilmente, tão elegantemente, tão abundantemente reproduzido por fontes livres de crueldade. Vergonha de nossos apetites depravados. Vergonha de nossa humanidade pervertida. Vergonha de nossa absoluta corrupção
.

Pela manhã, ela deu seus primeiros e doloridos passos por conta própria, seus primeiros passos atordoados em direção à vida que estava enfim livre para começar. Ela pisou em sua vida livre silenciosamente, calmamente, assim como se entra em uma vida vegana – não como se entrasse em um mundo novo e estranho, mas como se retornasse a um que é profundamente familiar; como se voltasse para casa.

http://peacefulprairie.blogspot.com/2007/11/coming-home_13.html

Joanna Lucas
© 2007 Joanna Lucas
Translated by Leo Wilczek

 
  The Faces of “Free-Range” Farming